Como as nossas mães

Vai aí o texto de hoje do blog do Ivan Martins, acho que virei fã desse cara.
Muito bom, como de costume. Aí vai. Vou reproduzir na íntegra, e dessa vez vou me atrever a dar um pitaco:


Por que as pessoas repetem os erros das suas famílias?

Quando se trata de família, acho que cada um de nós carrega um tipo de software.

Se você cresceu numa família com pais que se gostam e se respeitam, ganhou de brinde um software que ajuda a ficar casado. Se cresceu em meio a berros e as lágrimas, ou se num momento qualquer seus pais cansaram de brigar e se separaram, é provável que traga consigo um software menos útil para a manutenção da família.

Como tudo que eu escrevo nesta coluna, essa é apenas uma impressão pessoal sem valor científico. Mas faz algum sentido.

Os valores e atitudes condizentes com a família são produzidos e repassados naturalmente em uma casa feliz – e o inverso acontece com famílias desestruturadas. São duas culturas, dois legados, dois softwares. Algo que a gente recebe, carrega e, frequentemente, reproduz.

É sobre isso que eu queria falar.

No fim de semana, vi no cinema um lindo filme brasileiro, Sonhos Roubados. Ele conta a história de três meninas que se prostituem.

Elas nasceram pobres, na favela, em famílias precárias. Uma é criada pelo tio que abusa dela sexualmente. Outra é expulsa de casa aos 16 anos. A terceira tem 17 e já cuida de uma filha. Nenhuma delas tem pai. As três são filhas de mulheres prostituídas. As três repetem o mesmo caminho.

O filme baseia-se em personagens reais extraídos do livro reportagem de Eliane Trindade, As Meninas da Esquina, publicado pela Editora Record. Um livro tocante deu origem a um filme comovente. E verdadeiro.

A história dessas meninas me fez pensar na questão das famílias – no software que a gente carrega – e na vocação perversa que temos de reproduzir os erros dos nossos pais.

A filha da gravidez indesejada deveria fugir como louca da mesma situação, mas nem sempre é isso que acontece. Vale o mesmo para o filho do bêbado e do bandido, assim como do sujeito que abandona a família. O exemplo de sofrimento deveria conduzir as pessoas na direção contrária, mas não é necessariamente assim. As histórias muitas vezes se repetem.

A gente aprende com os pais a ser alguma coisa na vida, parecida com o que eles são. O que eles ensinam com seu exemplo e com seu convívio – ou com a sua ausência - se torna parte do que somos. Nos inspira ou nos aterroriza, tem de ser abraçado ou combatido, mas, de alguma forma, está lá, como um software no computador.

Hoje em dia virou moda falar mal da psicanálise. É uma pena, porque uma das coisas que Freud ensinou a fazer é identificar nas nossas atitudes e nas nossas palavras o software secreto que nos dá alento ou nos apavora.

Um exemplo pessoal: logo que me separei, corri ao analista achando que a minha vida iria acabar. Estava tudo em ordem, mas eu morria de medo. Por quê? Estava morto de culpa pela separação, é óbvio. Mas havia outra coisa, que ficou clara com o tempo. Meus pais também se separaram e disso resultou uma distância enorme do meu pai. Quando eu me separei, um pedaço de mim achava que eu fosse também me afastar dos meus filhos. Estava apavorado com a ideia de me distanciar, de não ser um bom pai, de faltar com os meus filhos de alguma forma. Esse era o software da minha família, afinal. Era uma espécie de legado paterno que teve de ser entendido e abandonado.

Aqui é que eu quero me meter. Faço psicanálise há anos e o que ele narra no texto é chamado de "compulsão a repetição".
Ano passado li um livro chamado "O ciclo da auto-sabotagem" (hoje "autosabotagem", certo?), de Stanley Rosner e Patricia Hermes. Recomendo.

Nem sabia dessa "onda" contra a psicanálise. Mas faz algum sentido. Na psicanálise, o buraco é mais embaixo, a gente tem que ir a fundo nas coisas, identificar as causas e buscar as soluções. Isso dá trabalho e leva tempo. Há os que preferem jogar tudo pra debaixo do tapete por não conseguir encontrar soluções prontas e imediatas, ou buscar outros caminhos. Eu agradeço por ter consulta hoje...

Voltando ao texto do Ivan:

Quantos de nós têm a chance de fazer isso: confrontar-se com os seus temores (ou com seus desejos) e perceber neles algo que foi herdado, que está nos atrapalhando ou sendo reproduzido de forma impensada na nossa vida?

Um dos momentos mais tristes e mais reveladores de Sonhos Roubados é, para mim, quando uma das meninas, a que foi expulsa de casa pela mãe prostituta, que nunca teve pai, diz ao namorado bandido que quer ter um filho dele. E tem. Que coisa maluca é essa de tentar reproduzir (ou resolver) na nossa vida o que deu errado na vida dos nossos pais? Na falta de resposta melhor, eu repito: é software.

Claro, não estamos lidando apenas com as questões da subjetividade. O filme deixa claro que as meninas vivem em total abandono. A escola, que poderia ser um mecanismo de superação da miséria, nunca tem aulas. O Estado que recolhe impostos e angaria votos não provê segurança, nem trabalho, nem serviço de saúde. Crianças e velhos não têm o que comer, literalmente. O filme começa com uma panela vazia e termina com três meninas rodando bolsa na rua. Nem precisa de Freud para entender isso.

(Ivan Martins escreve às quartas-feiras, na @RevistaEpoca.)

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