O Campeonato Paulista de 1985 e uma história que nunca terminou

Por Marcello Moreno.
Publicado originalmente em https://marcellomoreno.medium.com/ 

22 de dezembro de 1985, domingo, estádio Cícero Pompeu de Toledo, Morumbi, São Paulo.

Naquele ensolarado dia de domingo, cem mil torcedores estavam presentes para assistir à final do Campeonato Paulista daquele ano. Portuguesa x São Paulo se enfrentariam pela última vez para decidir quem ficaria com o título de campeão daquele ano. Os dois mereciam levar o título. A Portuguesa teve a melhor campanha na fase de classificação, todos contra todos, em dois turnos. O São Paulo foi reforçando seu time ao longo do campeonato, com as contratações do goleiro Gilmar Rinaldi, do lateral direito Zé Teodoro e de Paulo Roberto Falcão, o Rei de Roma, que se somaram aos excelentes Oscar e Dario Pereyra, Nelsinho, Marcio Araújo, Careca e Pita, e aos “menudos” Silas, Muller e Sidney, vindos das categorias de base do Tricolor. Para muitos, era o melhor time do Brasil.

O apelido de “menudos” surgiu em razão de um grupo musical formado por jovens latinos que fazia bastante sucesso naquela época, com direito, inclusive, a uma apresentação no próprio estádio do Morumbi, naquele mesmo ano.

No primeiro turno, o Tricolor venceu a Lusa por 3x0, no Pacaembú. No segundo turno, a Lusa deu o troco, no Morumbi, 1x0. Classificados para as semifinais, o São Paulo enfrentou o Guarani e a Portuguesa encarou a Ferroviária. Naquele ano, nem Corinthians, nem Palmeiras e nem Santos conseguiram classificação para as semifinais. O Tricolor e a Lusa não tiveram muitas dificuldades para vencer seus adversários e chegar à final, que seria decidida em duas partidas no Morumbi, com a Portuguesa levando a vantagem do empate nos dois jogos para sagrar-se campeã. O São Paulo teria que vencer ao menos um dos jogos, e empatar o outro.

O primeiro jogo da final aconteceu no dia 15/12/1985, domingo, uma semana antes da finalíssima. Noventa mil torcedores estavam no Morumbi, a maioria esmagadora torcedores do Tricolor, fato que se repetiria no segundo jogo. O time da Lusa era muito forte, liderado por Luís Pereira, ainda em grande forma, Edu Marangon e Jorginho, mas a máquina tricolor estava azeitada como nunca. A vitória são-paulina foi por 3x1, gols de Dario, de pênalti, e dois de Careca. Para a Lusa, Jorginho diminuiu. O São Paulo colocava uma mão na taça e a torcida estava feliz e ansiosa para o próximo domingo.

E, neste momento, peço licença para contar uma outra história, que tem tudo a ver com aquela final de campeonato.

Naquele longínquo 1985 eu tinha 13 anos de idade e, até o início daquele ano, eu tinha ido ao estádio somente duas vezes. A primeira foi no segundo jogo da final do Paulistão de 1982. Corinthians 1x0 São Paulo, gol de Sócrates. Houve três jogos finais, e o Corinthians acabou campeão. Eu tinha 10 anos, e descobri que uns garotos que eram primos de um vizinho do prédio em que eu morava já tinham ido no primeiro jogo da final, e iriam também nos outros dois. Pedi que me levassem, e eles toparam! Avisei a minha mãe, que não deve ter levado a essa história muito a sério. No dia do jogo, uma quarta-feira, à noite, eles tocaram a campainha, e eu fui. Minha mãe não havia retornado do trabalho e minha avó achou aquela história bem esquisita:

- Tem certeza que a sua mãe deixou?

- Claro que sim, respondi, e saí depressa!

Na volta do estádio, tarde da noite, minha mãe me esperava na porta no prédio. Além do São Paulo ter perdido o jogo, e depois, o campeonato, fiquei pelo menos umas duas semanas de castigo sem poder sair de casa, já durante as férias de final de ano.

A segunda vez, no ano seguinte, foi bem mais tranquila, desta vez minha mãe realmente me deixou ir, com a mesma turma, só que desta vez no Canindé. Portuguesa 1x1 São Paulo, que empatou o jogo no finalzinho, no sufoco, com um gol do Marcão, centroavante que lembrava o Serginho Chulapa.

Voltemos a 1985. Naqueles tempos, vivíamos uma vida meio nômade, mudando de um lugar para outro com frequência. E, naquele ano, conseguimos alugar um apartamento decente no bairro do Morumbi, num lugar que ninguém queria morar, pois era longe pacas. Nós não tínhamos automóvel e só havia uma linha regular de ônibus que passava pelo lugar, e era difícil para subir neles, de tão cheios que eram. No caminho de casa, o estádio do Tricolor.

Não demorou para eu querer ir ao estádio. Aconteceu num domingo, 3 de fevereiro de 1985. São Paulo x Palmeiras. Faltava uma semana para meu aniversário de 13 anos. Chegamos diante do estádio, eu e minha mãe, que até aquele dia ainda torcia para o Corinthians (do lado da família da minha mãe, todos eram corintianos e, do lado do meu pai, santistas). Já na bilheteria, descobrimos que a grana só dava para comprar dois ingressos da geral. Para os mais jovens, a geral era um setor popular que, no Morumbi, ficava na altura do gramado, atrás dos gols, sem cadeiras nem degraus de arquibancada. Assistia-se ao jogo em pé, ou sentado no chão, quando dava. A verdade é que não dava pra ver porcaria nenhuma. Não foi muito legal, mas eu estava lá! O resultado do jogo foi 2x2, e eu ainda não tinha visto o tricolor vencer.

Nas férias de julho de 1985 fui passar uns dias na fazenda onde minha avó, mãe do meu pai, morava, na região de Ribeirão Preto. Logo que voltei a São Paulo, soube que haveria jogo no domingo seguinte. 14 de julho de 1985, São Paulo x Palmeiras, de novo! E lá fomos nós outra vez, desta vez mais preparados, e pudemos ver o jogo das arquibancadas. Desta vez, o tricolor amassou o rival, vencendo por 3x2 e, neste dia, conheci aquele que se tornaria um dos meus maiores ídolos da história do Tricolor: Muller, que fez dois gols, e num deles deixou o já veterano goleiro Leão caído sentado.

Como não havia escola pública na região em que eu morava, tive que ir estudar no bairro do Itaim Bibi. Pegava o ônibus Anhangabaú/Jardim Irene, aquele mesmo do Cafu, e passava em frente ao estádio todos os dias. E no Paulistão daquele ano, o São Paulo marcou vários jogos as 4:00 da tarde, mesmo durante a semana. Chamavam de “matinês”. Daí ficou fácil para mim. Na volta da escola, descia em frente ao estádio, assistia o jogo e depois voltava a pé para casa. Subia os cerca de 4 quilômetros da Avenida Giovanni Gronchi que restavam para chegar em casa feliz da vida. Aos sábados e domingos, claro, era bem mais tranquilo, e nisso acabei conquistando o direito de ir aos jogos sozinho!

São Bento, Comercial, Inter de Limeira, Paulista, Botafogo, Corinthians (no Pacaembu e no Morumbi!), Portuguesa, Santos, Palmeiras, Noroeste. Que eu me lembro, destes jogos, só perdemos para a Portuguesa e Palmeiras, no returno, e empatamos com o Corinthians no Pacaembu, onde eu fui com um colega da escola com quem mantenho contato até hoje, carioca e flamenguista, mas que foi torcer para o Corinthians.

Então, se o São Paulo jogasse no Morumbi, e não fosse à noite, eu estava lá! Exceção ao jogo contra o Corinthians no Pacaembu, e o jogo de estreia do Paulo Roberto Falcão pelo São Paulo, num amistoso contra o seu antigo clube, o Internacional de Porto Alegre. Naquele dia, minha avó foi escalada para me acompanhar e, por isso, tivemos algumas regalias, como assistir o jogo das numeradas e voltar para casa de táxi. A vitória foi do Tricolor, 1x0.

Quando o campeonato já estava chegando perto do final da fase de classificação, num dia lá pelo mês de novembro, voltando da escola, me deu na telha de descer do ônibus na frente do estádio. Mas não era dia de jogo. Não demorou pra eu achar um vão qualquer num dos portões de acesso e consegui entrar no estádio. Os portões das escadas de acesso aos pavimentos estavam abertos, e eu pude ir pra onde eu quisesse. Fiz, sozinho, meu próprio tour no Morumbi. Eram outros tempos… Depois de sei lá quanto tempo, notei que alguns jogadores, acho que das categorias de base, começaram a subir ao gramado e bater bola. Pouco depois, subiu o time principal. Era dia de coletivo e eu nem sabia! Lembrando que nesta época não existia, ainda, o Centro de Treinamento da Barra Funda.

Sorrateiramente, pulei o fosso que separa as numeradas do gramado, que não é tão alto assim, e fui chegando perto. Ninguém me estranhou. Na hora que dei por mim, estava sentado no banco de reservas, conversando com “seu” Hélio dos Santos, saudoso massagista que trabalhou no São Paulo por muitos anos, e foi bi-campeão mundial no Japão anos depois. Em 1985, quando alguém se machucava, ele entrava em campo junto com o Doutor Marco Aurélio Cunha, que corria tão depressa que desconfio poderia ter feito carreira de sucesso no atletismo. Seu Hélio me contou muitas histórias, sobre o time, os jogadores, os melhores gramados do Brasil etc. Foi muito generoso da parte dele ter me dado toda aquela atenção.

Quando terminou o coletivo, alguns jogadores foram treinar chutes no gol de entrada do Morumbi. Gilmar no gol (podem chutar que aqui não entra, dizia ele), Muller, Silas, Márcio Araújo, Paulo Roberto Falcão, Oscar…

“Cuidado pra não levar bolada, que vai machucar”, me avisaram. Então, fiquei na linha lateral, próximo à linha de fundo, assistindo, e pegando a bola pra eles de vez em quando. Me pediam “por favor”. Além de craques, os caras tinham educação. Os demais que me desculpem, mas o São Paulo sempre foi um clube diferente…

Atrás do mesmo gol, sentados nos bancos de madeira, e encostados nos corrimões dos túneis dos vestiários, tinham vários jornalistas, a maioria deles bem empolgados, e já falando abertamente que aquele time seria o campeão. A atmosfera era realmente especial.

Não era a primeira vez que naquele ano eu havia tido contato com os jogadores, pois numa das matinês, o jogo terminou mais cedo. O Paulista de Jundiaí, perdendo por 2x0, teve vários jogadores expulsos, e acabaram repetindo o famoso cai-cai do Santos de Pelé contra o Tricolor em 1963, quando já estava 4x0 para nós. Naquele dia, junto com outros garotos, consegui “invadir” o que hoje é a área de acesso aos vestiários. Mas, desta segunda vez, foi muito mais especial.

Na última rodada, jogo contra o Noroeste, no Morumbi. Caía uma chuva incrível, e o Tricolor venceu fácil, por 2x0, com um gol sem querer do Sidney, que foi cruzar na área e a bola entrou no gol. O Norusca, coitado, foi rebaixado. Enquanto isso, o Palmeiras perdia a classificação em casa para o XV de Jaú.

E antes de passar para as semifinais, peço licença para contar sobre o Paulo Roberto Falcão, que havia recém chegado no São Paulo. Conhecido como o “Rei de Roma”, foi bi-campeão brasileiro pelo Internacional, craque da seleção brasileira na Copa de 1982, e campeão Italiano pelo Roma depois de nem sei quantos anos de fila. Falcão chegou ao São Paulo, vindo da Itália, já no segundo semestre de 1985, com o campeonato em andamento, e o time do São Paulo voando baixo. Todos imaginaram que o saudoso Cilinho, o treinador que montou aquele time fantástico, sacaria o Márcio Araújo, que jogava como volante, para a entrada do Falcão. Mas, primeiro, quem saiu foi Dario Pereyra, machucado, e o Márcio, que era meia esquerda de origem, foi jogar de quarto zagueiro. Quando Dario voltou, quem saiu foi o Falcão, e o Márcio ficou no time. Em alguns jogos, o Falcão nem chegou a sair do banco para jogar e, com o tempo, foi-se criando um mal-estar. Mas como o time estava indo bem, a coisa permanecia sob controle. Só a partir da semifinal que Falcão se tornou titular, e quem acabou saindo foi o Pita. O Márcio Araújo seguiu no time. Infelizmente, não havia como colocar 12 jogadores em campo.

Na semifinal, contra o Guarani, o primeiro jogo foi em Campinas e eu consegui dar um jeito de ir, sem que ninguém em casa percebesse exatamente o que eu tinha feito. Aproveitei-me do fato de possuir uma autorização permanente de viagem, que usava para viajar a Santos, onde moravam os parentes do meu pai, e subi no ônibus da torcida organizada rumo à Campinas. Foi a primeira e única vez que viajei numa caravana de torcida organizada. Viagem tranquila na ida, o Tricolor conseguiu um ótimo empate, só que na volta nosso ônibus foi todo apedrejado pela torcida adversária. No final de semana seguinte, o São Paulo ganhou por 3x0 com facilidade, confirmando a fase inspiradíssima de Careca, que formava uma dupla espetacular com Muller. Não à toa, Careca foi o artilheiro do campeonato, com 23 gols, e Muller o vice-artilheiro. Além de terem se tornado a dupla de ataque da seleção brasileira na Copa de 1986.

E eis que chegamos à final! Como eu disse no começo, a Portuguesa, dona da melhor campanha, tinha a vantagem dos empates. O time deles era forte, e já havia ganhado no Morumbi no returno. Então, o tricolor precisava vencer logo no primeiro jogo. 15 de dezembro foi um domingo ensolarado e eu fiz questão de chegar bem cedo ao estádio, para pegar o melhor lugar na arquibancada, que os são-paulinos “raiz” sabem bem onde fica: bem no centro, acima do lugar onde ficavam as cabines de rádio, no lado oposto aos bancos de reservas. Daí era esperar e ver o estádio ir enchendo até a hora do jogo. São Paulo 3x1 e muita festa da torcida. Com a vitória, o Tricolor colocava uma mão na taça, pois agora só dependia de um empate para ser campeão, mas a Lusa ainda merecia respeito.

Faltava uma semana para a grande final e eu estava feliz, afinal, seria a primeira vez que eu veria meu time ser campeão no Morumbi. Mas, no decorrer daquela semana, aconteceu algo que mudaria os rumos desta história. Minha mãe sugeriu que eu deveria passar o Natal com a família do meu pai, tios, avó e, se bem me lembro, uns primos que torciam para a Lusa. Até onde me recordo, não foi uma ordem, o que deixa tudo ainda mais estranho. Honestamente não me lembro se eu realmente quis viajar ou se não tive coragem de dizer não a alguém. O fato é que no dia 22 de dezembro de 1985, dia da grande final, eu estava numa fazenda em Altinópolis, região de Ribeirão Preto, mais de 300 quilômetros distante do estádio do Morumbi. Devo ter imaginado que ia passar na televisão, só que a Portuguesa não concordou com valor que ofereceram pela transmissão, e ela não aconteceu. Restou-me ouvir o jogo no radinho de pilha, aquele mesmo que eu levava para acompanhar os jogos no estádio, e que a cada gol acabava voando pelas arquibancadas. Só que lá na fazenda ele não pegava tão bem assim.

A Lusa começou jogando muito bem, mas o São Paulo fez 1x0, gol de Sidney. Levamos o empate ainda no primeiro tempo, e só perto do final da partida o Tricolor fez 2x1, gol de Muller. O Tricolor era o campeão paulista de 1985 e eu estava no meio do mato, sem poder ver nada. Quando voltei a São Paulo, dias depois, minha mãe contou que do apartamento ouviu os fogos da comemoração do título, e que na hora chorou de emoção, feliz pelo São Paulo ter vencido. E naquele momento eu percebi que aquele momento tão especial para mim realmente tinha acontecido e eu não estava presente.

No início de 1986, nos mudamos novamente, e para bem longe do Morumbi, mas a essa altura não havia mais distância que me separasse do meu querido Tricolor. Continuei a ver os jogos sempre que podia, e quando não podia também dava um jeito. Assisti no estádio as decisões de 1987 (Paulista), 1992 (Libertadores e Paulista) e em 2005, fui aos dois jogos da final da Libertadores. Em todas essas, o São Paulo foi campeão. Na minha conta, talvez um pouco exagerada, assisti a mais de 200 jogos no Morumbi, mas, o único jogo que eu não poderia ter deixado de ir era aquela finalíssima de 1985, e isso vai se tornando mais claro para mim a cada ano que passa. Quando vi a notícia de que já se passaram 35 anos daquele dia, me emocionei e resolvi contar essa história.

Logicamente, eu assisti esse jogo em vídeo-tape inúmeras vezes. Hoje, com o YouTube, vejo sempre que me dá vontade. Mas nada supera a frustração de não ter estado lá naquele dia, que seria o feliz epílogo da história daquele garoto de 13 anos, que teve o privilégio de ver surgir, diante seus olhos aquele que, para muitos, foi o melhor time da história do São Paulo FC.

E assim, peço desculpas por terminar essa história, por assim dizer, incompleta. Não a do São Paulo campeão de 1985, mas a daquele garoto que não conseguiu viver aquele sonho até o final, e até hoje se arrepende por isso.

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